segunda-feira, 11 de abril de 2022

EH, VIDA DE GADO!

 

Adão de Souza Ribeiro

                   Quando pequeno, ficava observando a boiada passar pela estrada, defronte minha casa. Na frente, o sinoeiro com paciência mostrava o caminho a ser percorrido até outra fazenda, ou, talvez, para o matadouro. O barulho pesaroso do berrante ecoava pelo sertão e eu ficava ali, embriagado por aquela cena campesina.

                        O poeirão deixado pela manada, coloria o passado de saudade. O cachorro mateiro, numa fidelidade invejável, ajudava os peões na condução dos bois e no alerta sobre bichos predadores ou peçonhentos. Em passos lentos e despreocupados, lá ia à boiada e os boiadeiros, rumo ao desconhecido. E eu ali, observando com ternura, pequeninas coisas, que o mundo moderno desconhecia.

                        O tempo passa, a vida passa, mas a saudade permanece. Chamava atenção, quando um boi arredio dispersava do bando. Imediatamente, o peão auxiliado pelo Pitoco, aquele cão fiel, arrebanhava de novo para o grupo. Às vezes, o boi relutava, mas era vencido e obrigado a seguir de cabeça baixa, o destino da manada.

                        E assim, a cena desenvolvia-se diante dos meus olhos, como numa película de cinema. Quando o boi era bravio, ficava atrelado a outro boi condutor, através de uma canga. O outro, pacientemente, arrastava-o. Parece até que dizia: “Calma menino, essa é nossa vida, esse é nosso destino”.

                        Eu ficava imaginando o que se passava na mente de cada boi e olha que eram centenas de cabeças, as quais, vistas de longe, formavam um tapete. Será que eles teriam o amanhã, ou o momento deles era quando? De vez em quando, ouvia-se o mugido triste de um boi revoltado com o destino, mas ele nada podia fazer para mudar o rumo da sua própria história.

                        Seu protesto era engolido pela manada. O tempo passou, a vida passou, mas a saudade não passa. Hoje, passado muitos anos, encontro-me na cidade grande... grande em maldade... grande em tristeza. Da janela do apartamento, vejo um povo triste e solitário, caminhando pelas ruas e vielas, seguindo um destino incerto.

                        Como num toque de mágica, volto aos tempos lá do campo e revejo a manada passando defronte da minha casa. Não há poeira, nem mugido e nem grito de peões. O povo segue calado, rumo ao matadouro ou ao despenhadeiro, talvez. Quando estou no auto-coletivo e vejo aquele monte de velhos e deficientes empastelados ali, antes da catraca; fila de banco que não anda há horas; um trânsito engarrafado, que percebe que nada mudou.

                        Vejo que o homem e o boi são eternamente semelhantes. Vai pacientemente rumo ao aniquilamento total... não se rebelam... não riem e nem levanta a cabeça. Preocupa-me saber que o homem, um boi pensante, segue as ordens de lideres corrupto ou autoritário e digere com naturalidade as determinações recebidas.

                        Já o boi irracional, embriagado com o som do berrante ou com a cantoria dos peões, pensa que a vida segue apenas as pegadas de um destino nebuloso e incerto. Marcado pela espoliação das classes dominantes o homem segue solitário, rumo ao despenhadeiro. Ao final da caminhada, o homem e o boi, cantam a velha canção de um artista, forjada na bigorna da ditadura militar, que diz: “Eh, vida de gado. Povo marcado, povo feliz”.

Peruíbe SP, 19 de setembro de 2005.

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