quarta-feira, 18 de maio de 2022

FOLIA DE REIS

 

Adão de Souza Ribeiro

 

                        Já ao anoitecer, Gordo – cujo nome de batismo era Denilson – preparava o instrumento,  para mais uma peregrinação pela cidade e zona rural, no conhecido torrão natal. Assim como ele, outros moradores, que compunham a Banda, organizavam a sanfona, reco-reco, violino, viola, violão, cavaquinho, bumba, triângulo e pandeiro.

                        Existiam duas Bandeira (Grupo), ou seja, o da Alice - esposa do "Doce" e a do Denilson, o "Gordo". O grupo era composto por mestre, contramestre, donos de conhecimento sobre a festa, capitão ou capitã,  porta bandeira, músicos e cantores, além dos três reis magos, representados pelos tres palhaços, que davam alegria ao evento. Somente os três palhaços cobriam o rosto com máscara e usavam gorros na cabeça em forma de funil. 

                  Somente os palhaços, usavam roupas coloridas do tipo chitão, onde prevalecia o vermelho, marrom e azul. Com fitas coloridas e amarradas nos instrumentos, coroava tudo aquilo, com ar de uma beleza peculiar.

                        Não se permitia que, durante o cortejo, alguém andasse à frente da Bandeira, a qual era conduzida pelo Capitão ou Capitã. A banda era seguida por cerca de cinquenta acompanhantes e simpatizantes. Não se permitia a presença de menores de idade.

                        Estando pronto e reunido, a Bandeira partia rumo às casas a serem visitadas naquela noite. Todos felizes obedeciam ao comando do Capitão ou Capitã, pois assim era chamado o líder. Aquela peregrinação durava até o dia amanhecer.

                        No outro dia, a rotina se repetia. As andanças começavam no dia 06 de novembro até 06 de janeiro, data que era realizada a comemoração pelo encontro de Jesus Cristo, o Salvador. O jantar era regado com muita música alusiva à folia. A data do esperado jantar, ocorria no dia em que as pessoas desmontavam a árvore de Natal.

                        Em frente à casa visitada cantava-se uma música anunciando a chegada, que era assim: "Senhora dona da casa/ Vem pegar nossa Bandeira./ Senhora dona da casa/ Passa a mão no travesseiro./ Acordar o seu marido,/ Que está no sono primeiro./Santo Reis está passando na frente da sua casa parou./ Ele vem de porta em porta,/ Visitando o morador,/ Com prazer e alegria./ Para benzer a sua    morada./ Vem pegar a Bandeira,/ Filho da Virgem Maria,/ Com prazer e alegria.". 

                         Caso fossem aceitos, adentravam e entregavam a Bandeira ao varão ou varoa, a qual era colocada no canto da sala e recolhida no final da estadia. Durante todo o tempo, eram servidos quitutes, guloseimas e café, bem como, café que eram carinhosamente preparado e servido aos visitantes. Também eram servidos cachaça e vinho, para que aguentassem "varar a noite", que aconteciam até o dia amanhecer. Muitas vezes, os embriagados ficam pelo meio do caminho, curando a ressaca da "marvada".

                        Quando havia duas Bandeiras (Grupos), rumava uma para cada lado. Na área rural, iam de ônibus, conduzido por “Xará”, ou na carroceria de caminhão. Cerca de trinta casas eram visitadas numa só noite. Até hoje, todos se lembram de Sanô, Antônio Jacinto, Hélio, Marão de Getulina, Coquinho, Tio Dito, Waldomiro, Ringo, Nico, Lairton,  e dona Alice. Sim, mulher também participava.

                        Caso as Bandeiras se cruzassem no caminho, travava-se um desafio de cantorias (música e verso) em forma de repentes. O grupo vencedor ficava com a Bandeira do rival e sem ela, o outro não poderia continuar a peregrinação. Tudo em clima de muita alegria e sem brigas, claro!

                        Ao término, os anfitriões ofertavam dinheiro, alimento, porco e aves, cuja doação era chamada de “prenda”, que seria usada no dia 06 de janeiro. As ofertas ficavam guardadas na casa do Capitão ou Capitã. O jantar ocorria no salão de festa na cidade, onde toda a população era convidada a participar. Se sobrasse, no dia seguinte, era servido de novo.

                        Aquela tradição chegou com colonizadores portugueses. Também é uma alusão aos três reis magos: Gaspar, Baltazar e Melquior, que saíram à procura do menino Jesus, a fim de presenteá-lo. Hoje anda esquecida.

                        Ao lembrar-se daqueles tempos áureos, percebe-se que a modernidade sufocou a história do povo, representada pelos costumes e tradições. Aos pouco, os adeptos foram morrendo e os novos não se interessaram em dar continuidade. O progresso aniquilou de uma vez por todas, a identidade da cidade ou da Nação. Quem vivenciou tudo aquilo, ou seja, aqueles anos dourados, sabem do que se está falando.  

                        Após narrar àquela história tão linda, que tanto enriqueceu os costumes e as tradições da minha Terra Natal, o Valdecir - nosso querido “Doce” - um velho saudosista, o qual, já cabisbaixo, com a voz embargada e lágrimas nos olhos, disse: “Depois que acabou a Folia de Reis, a cidade anda tão triste!”.

 

 

Peruíbe SP, 17 de maio de 2022.

                         

                       

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