Adão de Souza
Ribeiro
A
criança vê o mundo de um jeito e de um ângulo diferente. É com esse olhar encantador, que a vida se torna mais suportável
e amena. Todos nós, cristãos ou ateus, quando lembramos do passado, vamos
diretos na lente da infância. Eu pelo menos sou assim e, por isso, sou muito
grato a essa fase da vida.
Cada imagem ou cada cena da infância, deixam
marcas indeléveis para o resto da vida. Quando divagamos em lembranças
pretéritas da fase pueril, exclamamos: “Nossa que tempo bom, que não volta mais!”.
As histórias contadas pelos avôs, as brincadeiras gostosas e intermináveis, as
aulas no grupo escolar, as traquinagens inconsequentes, tudo tinham sabor de
inocência. Quem aproveitou bem, sabe disso.
O campo de futebol, o matadouro, a lagoa do
Hermininho, a estrada de terra do Bairro Bondade, a mata da “Granja Helvetia’,
a enorme Caixa D`Água, a criação do bicho de seda, o córrego “Arrothéia”, a
escola agrícola e por aí se vai. Tudo está gravado na memória.
Hão coisas na vida, que a mente do infante
não consegue compreender. A minha cidade natal, que carinhosamente chamo de
Terrinha, é pequena e aconchegante. O seu povo era trabalhador e honesto, onde
todos se conheciam e até se davam em casamento.
Não havia violência, apenas brigas ente cachaceiros,
depois de goles da marvada pinga, que se resumiam em xingamentos e empurrões,
separados pela turma do “deixa disso”. Até hoje não entendo o porquê haver ali
uma Delegacia de Polícia, a qual ficava ao lado do campo de futebol.
Um próprio público pequeno, composto da sala do
Delegado e do Escrivão, uma cela e uma sala reservada para Ciretran e emissão
de cédula de identidade. O delegado ali comparecia só para assinar documentos
ou em caso de emergência, pois respondia por outra cidade, onde morava.
A porta da cela estava sempre escancarada,
esperando um conterrâneo mais alterado, o que não ocorria. Por um tempo, esteve
ocupada por várias condenadas femininas, vindas de outra cidade, enquanto a
cadeia de lá era reformada.
Um vigário vigarista, oportunista de
carteirinha, andou rondando por ali. Não para salvar as pobres mulheres do
pecado, mas, sim, para separar a ovelhinha mais linda do rebanho para ele. Ela
não iria cuidar da sacristia, mas da Casa Paroquial, onde ele morava.
Na cadeia havia um único preso, ao que
parece, condenado por homicídio. Como era da Terrinha e sabiam não ser
violento, pois matara em legítima defesa de terceiro, ficava solto, isto é, não
trancafiado atrás das grades.
Quem passava por ali, podia vê-lo cuidando da
limpeza ou executando reparos no prédio. Muitas vezes o vi, fazendo compras no
comércio. Ele era, por excelência, muito educado, respeitador e prestativo. O
preso era alto, de compleição física forte e um grosso vozeirão. Todos o
respeitava e temia, embora não representava perigo.
Pelo fato dele gozar de toda aquela regalia,
é que eu não o considerava preso e dizia que a cela estava sempre vazia. Quando
algum conterrâneo era colocado ali, até passar a carraspana da bebedeira, era
ele quem abria e fechava a sela. Até porque ele dormia na sala de emissão de cédula
de identidade.
O preso cumpria com rigor, as restrições
impostas pela lei, ou seja, não frequentava bares, prostíbulos, festas e nem
igreja. Engraçado que o vigário vigarista não ia visitá-lo corriqueiramente e
nem rezava pela alma daquele pecador.
São por essas razões que eu considerava a
cadeia, uma peça de museu, pois, todas as vezes que passava defronte, eu a via
fechada. Eu sei que dirão, que ela é um mal necessário e que, por isso, tem que
existir.
Eu deixei a Terrinha em plena adolescência e,
por isso, não sei o fim daquele hóspede, ou melhor, preso da cadeia. Creio que,
em razão dos anos decorridos, ele já esteja morto. Que bom seria, se todas as
cadeias permanecessem escancaradas, sem ter quem as ocupassem.
A pena fria da lei diria: “Teje
preso!” e a sociedade ordeira e honesta, reconhecedora da não
periculosidade de seu cidadão, respondesse: “Teje solto!”.
Peruíbe SP, 18 de
novembro de 2023.
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