domingo, 21 de fevereiro de 2021

VELHA INFÂNCIA QUERIDA!

 

Adão de Souza Ribeiro

 

                   Não havia mais que quatro mil habitantes ali, naquele lugarejo. As casas, em filas indianas, caladas, não davam um pio. As ruas de chão batidos, sem as alpercatas para pôr nos pés. O comércio clamando por fregueses assíduos. O campo santo, lá bem distante, chorando o seu passado. A praça matriz, querendo brincar de ser feliz, com saudade dos casais enamorados. O campo de futebol, comemorando o “Sete de Setembro”, nos braços da comunidade nipônica. A cadeia, de grades enferrujadas, escancaradas a espera de pássaros canoros, renegados pelo povo, para tratar.

                        Também havia a pensão esperando o forasteiro tão desejado, pelo condado. Os corredores intermináveis, com a porta do quarto aberto, louco para dar afago. O badalar do sino, na torre de madeira, chamando os fiéis, para “Hora da Ave-Maria”. A vida bucólica dava um ar taciturno. Quando a noite chegava, o crocitar da coruja, tornava o lugar mais sombrio ainda. Mesmo assim, não havia quem não se encantava com o lugar, a primeira vista.

                        Astolpho nascera ali pelos idos anos de 1960. Isso mesmo, Astolpho com “ph”. Nome de batismo, dado por Philomeno, seu pai. Trouxera de berço, a sina de conviver e amar aquele lugarejo. Aí de quem maldissesse sua terra natal, era briga na certa. Conta que a lenda, que um dia ele moeu no cacete, um amiguinho que disse: “Aqui não é lugar para se morar. Aqui é o cú do mundo!”. Não havia lugar mais acolhedor do que aquele. Então, porque vomitar no prato que come?

                        De manhã, antes do alvorecer, lá estava na “Padaria do Toshe”, comprando uma bengala, nome do pão ali vendido que, em casa, cortava em sete fatias, passava manteiga e dividia com os irmãos. Antes, já tinha na porta da casa, o litro de leite, deixado pelo “seu” Hermininho, que todos os dias, vinha com a carroça, entregar à população, os clientes famintos. Ninguém mexia... ninguém derramava.. ninguém furtava.

                        Por ser o primogênito de sete filhos e sendo o pai dele, um caixeiro viajante, cabia a ele, a responsabilidade da família. Tornou-se adulto muito cedo. Astolpho era quem ia no “Armazém do Takadinha”, comprar os mantimentos para casa e deixar marcado na caderneta de crédito. Na “Farmácia do Zeca”, lá estava ele comprando uma pomada de frieira, para o irmão caçula. Quando ia comprar um pirulito no “Bar do Mori”, se divertia com a musquiteira, nome dado ao açucareiro, empesteado de mosquito, depositado sobre o balcão. No “Açougue do Ansanello”, comprava carne dos bois abatidos no matadouro local. Os meninos sagrados na Índia, ali esquartejados para o deleite de todos. O “Bazar do Armando”, o “Peter Magazine”, onde comprava fazenda, não de gado; mas de pano, para mãe cozer os uniformes escolares. Na “Quitanda do Josias”, vizinha de sua casa, comprava verduras e frutas, pedindo para marcar na caderneta. Na “Barraca do Raul”, antes “Barraca do Padre”, tomava um copo de Tubaína. No Banco Bradesco, procurava o gerente Cido, para realizar depósitos e pagar os boletos de Philomeno, seu pai, que também se escrevia com “ph”.

                        Mesmo diante de tanta responsabilidade, sobrava tempo para as brincadeiras infantis e, ainda, para apreciar a beleza e sonhar o amor platônico da menina mais cobiçada da redondeza. Que ninguém jamais saiba disso! A natureza primitiva e exuberante formava um anel no entorno da cidade. No Centro Comunitário, dirigido por dona Cidoca, o “The Tigers”, (time de futebol de salão), devorava os adversários.  Como se esquecer do grupo primário? Lá estudava em carteira dupla, com o amigo mais abastado, o qual, apesar de tanta posse, era tão humilde quanto Astolpho. Na hora do recreio (intervalo das aulas), os dois estavam no refeitório, degustando um prato da sopa suculenta ou tomando um copo de leite e achocolatado, acompanhado com meia dúzia de bolachas. Não existia o tal de bulling, mas, sim, só o bule de café. Doce lembrança do seu Leodônio e da dona Coca, grandes baluartes do Grupo Escolar "José Belmiro Rocha", que cuidavam com amor dos infantes.          

                        Astolpho, com “ph”, sempre teve queda para as palavras, mas não palavrões. E para as letras também. Lembra que, aos dez anos, foi agraciado com o diploma “Dia da Ave”, depois de redigir uma redação, elaborada com muito esmero. Grande admirador de Marcus Vinicius de Mello Moraes – “O Poetinha”, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Benevides de Carvalho Meireles, Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, Graciliano Ramos de Oliveira, dentre tantos outros ícones da Literatura Brasileira. Astolpho passou despercebido entre as pessoas que tanto amava. Bem, deixa pra lá!

                        Um belo dia, Astolpho seguiu as pegadas de seu pai Philomeno, o caixeiro viajante. Ele botou os pés neste mundão de Deus, deixando para trás o lugarejo que tanto amou e defendeu. Trocou a caderneta de crédito pelos contratos assinados, carimbados, selados e rubricados. O verdadeiro amigo da carteira dupla marcou para sempre. Mas hoje, no lugar dele, estão os falsos amigos, de personalidade dupla. No lugar da pensão vazia, cheia de afago, hotéis cinco estrelas, frios por dentro. Viu a cadeia escancarada, ser trocada por presídios entupidos de facínoras. A menina mais bela da redondeza, esquecida na gaveta dos seus sonhos.

                        Mas, o que mais importa, é que continuam jovens na sua memória saudosista, a imagem e os acontecimentos da “Velha infância querida!”.

 

Peruíbe SP, 21 de fevereiro de 2021.

   

2 comentários:

Unknown disse...

Uma viagem no tempo!
Como era bom viver nesse pequeno pedaço de chão. 🙏🏽😍♥️

Unknown disse...

Deu até saudades