Adão de Souza
Ribeiro
Não havia mais que quatro mil
habitantes ali, naquele lugarejo. As casas, em filas indianas, caladas, não
davam um pio. As ruas de chão batidos, sem as alpercatas para pôr nos pés. O
comércio clamando por fregueses assíduos. O campo santo, lá bem distante,
chorando o seu passado. A praça matriz, querendo brincar de ser feliz, com
saudade dos casais enamorados. O campo de futebol, comemorando o “Sete de
Setembro”, nos braços da comunidade nipônica. A cadeia, de grades enferrujadas,
escancaradas a espera de pássaros canoros, renegados pelo povo, para tratar.
Também havia a pensão esperando o forasteiro
tão desejado, pelo condado. Os corredores intermináveis, com a porta do quarto
aberto, louco para dar afago. O badalar do sino, na torre de madeira, chamando
os fiéis, para “Hora da Ave-Maria”. A vida bucólica dava um ar taciturno.
Quando a noite chegava, o crocitar da coruja, tornava o lugar mais sombrio
ainda. Mesmo assim, não havia quem não se encantava com o lugar, a primeira
vista.
Astolpho nascera ali pelos idos anos de 1960.
Isso mesmo, Astolpho com “ph”. Nome de batismo, dado por Philomeno, seu pai.
Trouxera de berço, a sina de conviver e amar aquele lugarejo. Aí de quem
maldissesse sua terra natal, era briga na certa. Conta que a lenda, que um dia
ele moeu no cacete, um amiguinho que disse: “Aqui não é lugar para se morar.
Aqui é o cú do mundo!”. Não havia lugar mais acolhedor do que aquele.
Então, porque vomitar no prato que come?
De manhã, antes do alvorecer, lá estava na “Padaria
do Toshe”, comprando uma bengala, nome do pão ali vendido que, em casa, cortava
em sete fatias, passava manteiga e dividia com os irmãos. Antes, já tinha na
porta da casa, o litro de leite, deixado pelo “seu” Hermininho, que todos os
dias, vinha com a carroça, entregar à população, os clientes famintos. Ninguém
mexia... ninguém derramava.. ninguém furtava.
Por ser o primogênito de sete filhos e sendo
o pai dele, um caixeiro viajante, cabia a ele, a responsabilidade da família. Tornou-se
adulto muito cedo. Astolpho era quem ia no “Armazém do Takadinha”, comprar os
mantimentos para casa e deixar marcado na caderneta de crédito. Na “Farmácia do
Zeca”, lá estava ele comprando uma pomada de frieira, para o irmão caçula. Quando
ia comprar um pirulito no “Bar do Mori”, se divertia com a musquiteira, nome dado ao açucareiro, empesteado de mosquito, depositado
sobre o balcão. No “Açougue do Ansanello”, comprava carne dos bois abatidos no
matadouro local. Os meninos sagrados na Índia, ali esquartejados para o deleite
de todos. O “Bazar do Armando”, o “Peter Magazine”, onde comprava fazenda, não
de gado; mas de pano, para mãe cozer os uniformes escolares. Na “Quitanda do
Josias”, vizinha de sua casa, comprava verduras e frutas, pedindo para marcar
na caderneta. Na “Barraca do Raul”, antes “Barraca do Padre”, tomava um copo de
Tubaína. No Banco Bradesco, procurava o gerente Cido, para realizar depósitos e
pagar os boletos de Philomeno, seu pai, que também se escrevia com “ph”.
Mesmo diante de tanta responsabilidade,
sobrava tempo para as brincadeiras infantis e, ainda, para apreciar a beleza e
sonhar o amor platônico da menina mais cobiçada da redondeza. Que ninguém
jamais saiba disso! A natureza primitiva e exuberante formava um anel no entorno
da cidade. No Centro Comunitário, dirigido por dona Cidoca, o “The Tigers”, (time
de futebol de salão), devorava os adversários. Como se esquecer do grupo primário? Lá
estudava em carteira dupla, com o amigo mais abastado, o qual, apesar de tanta
posse, era tão humilde quanto Astolpho. Na hora do recreio (intervalo das
aulas), os dois estavam no refeitório, degustando um prato da sopa suculenta ou
tomando um copo de leite e achocolatado, acompanhado com meia dúzia de bolachas.
Não existia o tal de bulling, mas, sim, só o bule de café. Doce lembrança do seu Leodônio e da dona Coca, grandes baluartes do Grupo Escolar "José Belmiro Rocha", que cuidavam com amor dos infantes.
Astolpho, com “ph”, sempre teve queda para as
palavras, mas não palavrões. E para as letras também. Lembra que, aos dez anos,
foi agraciado com o diploma “Dia da Ave”, depois de redigir uma redação,
elaborada com muito esmero. Grande admirador de Marcus Vinicius de Mello Moraes
– “O Poetinha”, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Benevides de Carvalho Meireles,
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, Graciliano Ramos de Oliveira, dentre
tantos outros ícones da Literatura Brasileira. Astolpho passou despercebido
entre as pessoas que tanto amava. Bem, deixa pra lá!
Um belo dia, Astolpho seguiu as pegadas de
seu pai Philomeno, o caixeiro viajante. Ele botou os pés neste mundão de Deus,
deixando para trás o lugarejo que tanto amou e defendeu. Trocou a caderneta de
crédito pelos contratos assinados, carimbados, selados e rubricados. O
verdadeiro amigo da carteira dupla marcou para sempre. Mas hoje, no lugar dele,
estão os falsos amigos, de personalidade dupla. No lugar da pensão vazia, cheia
de afago, hotéis cinco estrelas, frios por dentro. Viu a cadeia escancarada,
ser trocada por presídios entupidos de facínoras. A menina mais bela da
redondeza, esquecida na gaveta dos seus sonhos.
Mas, o que mais importa, é que continuam
jovens na sua memória saudosista, a imagem e os acontecimentos da “Velha
infância querida!”.
Peruíbe SP, 21
de fevereiro de 2021.
2 comentários:
Uma viagem no tempo!
Como era bom viver nesse pequeno pedaço de chão. 🙏🏽😍♥️
Deu até saudades
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