quarta-feira, 22 de julho de 2020

SERTANEJANDO

Adão de Souza Ribeiro

                    Todo fim de tarde, eu tinha por devoção, ficar sentado no mourão da porteira. Ali passava horas e horas, sem pressa de voltar para o casebre, onde se abrigava a família. Perdido em pensamentos, contemplava a natureza, numa idolatria sem limites, como se enamorar a pureza das coisas, fosse um pecado tremendo. Idolatrar o belo é admirar a si mesmo. Não estava nem ai para o que pensavam ou falavam de mim. Desde os primórdios da minha vida, gostava de ficar sozinho, longe dos problemas do cotidiano.

                    Quem caminhava pela estrada, via-me sentado e calado. Não entendia o que se passava comigo, mas eu, sim. Feito um estrangeiro, buscava dentro da alma, os caminhos da sabedoria e do entendimento para aquilo que entendia estranho e incompreensível. Não era à toa que, dirigindo-se a mim mesmo, pronunciava perguntas estranhas, na ânsia de obter respostas plausíveis. Assim foi a vida, assim foi o tempo e assim foi minha infância.

                    A estrada sem início e sem fim fascinava-me. Por quais mundos, ela viajara e quais mazelas colocaram à mostra? Não se prendia apenas ao mourão de porteira ou à cerca, que limitava os seus sonhos e fantasias. A estrada de chão batido e empoeirada pelos tempos de luta, soubera desafiar o desconhecido e vencer o inimaginável. Por caminhos tortuosos, ela seguiu o seu destino e cumpriu a missão de encurtar os dois pontos do universo. Fascinava-me, contemplar a estrada sem início e sem fim.

                    A revoada dos pássaros migrantes, a procura de clima propício e comida farta. As árvores frondosas, num bailar sedutor, convidando-me para tocá-las. A canção cristalina das águas da fonte, falando-me de amor e de liberdade. O cantar estridente e repetitivo de um pássaro no pé de ipê. Um calango esperto, escondendo por entre a moita de braquiária, querendo brincar de esconde-esconde. Um casal de preá, fazendo amor com muito frenesi, sem medo e sem pudor. O sol preguiçoso, procurando um canto para se amoitar. A chaminé lá de casa com sua fumaça, avisando que o jantar já estava pronto, em cima do fogão a lenha. E eu sentado ali, ao pé do mourão da porteira.

                    Lá longe, onde os olhos já não mais podiam divisar, os animais pastavam o que a terra lhes oferecia. Ao mesmo tempo, embora eu não pudesse ver, imaginava que numa cadência musical, os animais abanavam suas caldas, para espantarem as moscas inoportunas. É certo que em seus lombos, pássaros passeavam e se alimentavam de insetos, pois é assim que a natureza se comporta. Uma vez ou outra, alguém passava pela estrada, onde me cumprimentava com aceno ou não. Saboreava uma fruta madura, colhida do pé da goiabeira. Eis a razão pela qual, não tinha pressa de voltar para o casebre, tamanha era a contemplação do simples e do belo.

                    Numa daquelas tardes de introspecção, fui presenteado com uma cena bucólica e hoje, saudosista. Lá longe, naquela estrada de chão batido e empoeirada, comecei ouvir um som melancólico e compassado, o que atiçou a curiosidade. Ainda pela distância, não dava para arriscar uma opinião do que se tratava. Porém, à medida que se aproximava, pude ver que era uma carroça, tracionada por uma parelha de bois, presos por uma canga, conhecida por "Carro-de-Boi".

                    Aquela canção chorosa do cocão, lastimando o peso da carga sobre a mesa e presa pelos fueiros, dava conotação de melancolia. Os bois emparelhados e de cabeça baixa, com suas cangas presas ao cabeçalho, numa marcha lenta e compassada, puxava toda produção da fazenda. À frente, estava o carreiro, que com seu chocalho, conduzia o destino daquela daquela cena tão linda. Os bois, embora grandes e fortes, eram submissos às ordens do carreiro. Graças à força e a obediência da parelha, a cantareira e o chumaço, num romance sem fim, entoava a canção chorosa de que falo. Era embriagante ouvir o aboiar do carreiro.

                    Lá no casebre, o cheiro da comida caseira e do feijão tropeiro e, aqui fora, o cheiro dos bois suados, cumprindo a missão de transportar a carga do destino a que foram confiados. A cidade grande pode ter de tudo, mas falta-lhe a beleza que só o sertão tem. Ninguém, em sã consciência, há de roubar de mim, a imagem eternecida em minha memória, daquele carro de boi, passando pela estrada longínqua e deserta, de chão batido. As coisas do sertão, moram dentro de mim e, por isso, fazem parte da minha vida.

                    Todo fim de tarde, eu tinha por devoção, ficar sentado no mourão da porteira. Tal ato, virou uma rotina e um desejo sacrossanto. Sabia que num futuro não muito distante, a vida me convidaria a tomar novos rumos e que tudo aquilo, seria apenas um quadro amarelado e pendurado na parede do passado. Até hoje, o choro cadenciado do carro de boi, percorre as estradas pesarosas do meu coração saudosista.

                    Não demorou muito, para que o carro de boi emparelhasse com a porteira. Ali encostado no mourão e mascando um raminho da beira da estrada, rezei pela saúde do carreiro e dos bois. Num diálogo silencioso com Deus, eu disse: "Senhor proteja a vida deles. Que eles sigam em paz, a fim de cumprirem a missão que lhes foram confiada".

                    Enquanto eles passavam pela estrada longínqua e de terra batida, rumo ao desconhecido, eu fiquei ali sentado ao pé do mourão da porteira, SERTANEJANDO.

Guaimbê SP, 22 de julho de 2020.

6 comentários:

ROSEMARY disse...

Simplesmente lindo com gosto de infância. Me transportei a lindos dias de quando era criança, voltei ao sítio onde vivi boa parte de minha vida. Obrigada

Unknown disse...

Nossa que texto coeso, narrativa perfeita, daria um filme, foi passando em minha mente cenários lindos, é, de arrepiar, muito rico...

Pedro Ballesteros disse...

Sensacional, retrato do caboclo interiorano absorto em suas atribulações...

Anônimo disse...

Muito maravilhoso obrigada

Sonia Marly disse...

Lindo texto,através dele conseguimos fazer uma viagem e nos encantar!!!

Unknown disse...

Narrativa perfeita do homem sertanejo, a visita a "Terrinha" Guaimbê, com certeza-lhe trouxe novas inspirações...relatos como esses nos faz viajar no tempo. Parabéns!!!