domingo, 7 de fevereiro de 2010

O BURRO DE CARGA


Chá Preto era o nome de burro, mas não de um burro qualquer e, sim, de um burro pertencente ao meu avô. Trago ainda na memória, a imagem imponente daquele animal, cavalgando por toda a extensão do sítio. A sua crina, cuidadosamente penteada, depois de um banho prolongado, era de dar inveja as freqüentadoras de salão de beleza. O seu trote, firme e compassado, lembrava a disciplina imposta pelo comandante, durante as instruções no quartel.
Era indescritível o amor e a cumplicidade que existia entre ele e meu avô. Um gesto ou um olhar de meu avô era prontamente decodificado por ele. Por outro lado, meu avô também sabia ler o sentimento e as necessidades daquele animal prestativo e zeloso. Quando meu avô retornava da cidade e caia de seu lombo, em razão da embriaguez, Chá Preto seguia na caminhada e avisava meu pai sobre o ocorrido.
Durante o dia, sol a pino, lá estava o burro, puxando um arrastão, transportando os produtos do sitio até o celeiro. Ou então, o arado, no plantio da semente de milho ou arroz. De vez em quando, por complacência de meu avô, parava para tomar uma balde de água. A calda longa, feito batuta, orquestrava a expulsão da mosca que pousava em seu dorso. Mosca insistente, num animal paciente.
O suor corria pela testa e anca, mas nada de reclamação ou sinal qualquer. Tinha orgulho de servir ao meu avô, pois acreditava que seria reconhecido pelo seu trabalho e dedicação. Sonhou que, em sua homenagem, seria construído um busto e colocado na entrada do sítio, quando ele partisse para a morada derradeira. Ambos, Chá Preto e meu avô, tinham o corpo curvado e a pele carcomida pelo tempo. Mas não perdia de vista, a responsabilidade com a vida. Era preciso lutar e vencer.
Já ao cair da tarde e findo o trabalho, lá iam os dois para a sede do sítio, a fim de se desfazerem de suas tralhas. Depois do banho e da comida, meu avô conduzia-o para o curral, protegendo-o da chuva e do vento. Depois era a vez do meu avô, já em casa, tomar seu banho prolongado e relaxante. Dia cansativo e missão cumprida, merecia um trago de cachaça e uma pitada no cigarro de palha, recheado com fumo de corda. Deitado na rede da varanda, pitando o cigarro, ficava um longo tempo, contemplando a natureza, o arrebol.
Embora pequeno, sempre fui um observador. Por isso, adorava acompanhar o dia a dia, a labuta do meu avô e de Chá Preto. Aprendia com eles, o valor da amizade, do respeito e do trabalho honesto. Ainda sem entender muito, procurava ajudá-los naquela lida sem fim. Nas minhas orações, pedia sempre a Deus, saúde a eles e que hora derradeira, fosse tão suave como o pouso de uma coruja na cumeeira do paiol. “Já não bastava o sofrimento em vida!”, pensava comigo.
Á medida que fui crescendo e adquirindo conhecimento da vida, percebi que havia enorme semelhança entre o homem e o burro. Quando novo, portanto, cheio de beleza e energia, o homem é venerado pela família e pessoas que o cercam. Carrega nas costas, a responsabilidade da alimentação e educação dos filhos. Não obstante, a proteção e as luxurias da esposa. Para ele, não importa o peso de ser chefe de família, mas, sim, de poder criá-la com dedicação e orgulho.
Quantas noites mal dormidas e quantos sonhos inacabados. E os leões que tem que matar a cada dia, para continuar sobrevivendo? Enquanto os filhos crescem, ele se embriaga com a ilusão de que tudo é eterno, até mesmo o amor da própria esposa. Ela, de forma sedutora, diz que o ama e o idolatra. Faz promessa de findar a vida com ele e hipnotizado com a voz aveludada da fêmea, acredita nisso.
Sem que ele perceba, o sol da velhice vai queimando suas costas e o peso da vida, dobra a sua coluna. Mas ele segue lentamente sua caminhada, pois não pode demonstrar fraqueza. Assim como Chá Preto, espera ser reconhecido um dia, senão com um busto esculpido no jardim da casa, mas com frases de ternura ou um poema redigido numa folha amarelada do caderno de brochura.
Mas quando as primeiras rugas escrevem no seu rosto, as frases da velhice, começa ouvir em coro, a sinfonia do desprezo e do abandono. Chora triste e desconsolado. Mas de nada adianta filosofar sobre a ingratidão. Ela existe, nua e crua. Numa cadeira de balanço, esquecido na varanda, relembra seus atos heróicos, em prol da família, esquecendo-se de si próprio.
Assim também acontece com o burro de carga: quando novo é cortejado pelo dono, pois de sua energia, depende o progresso da propriedade rural. Mas quando envelhece, recebe como paga, o abandono no fundo do sítio, com pouco feno, água e carinho. Isso quando não é vendido para um frigorífico. O dono, do alto de sua ingratidão, esquece que um dia ele foi útil e que abdicou da juventude e do direito de ser livre do arreio e das traias em seu lombo. O homem e Chá Preto, não passam de animais de carga, transportando em seus lombos o peso da responsabilidade e recebendo como paga, os vinténs da ingratidão. Nos trotes compassados da existência, puxando o arado da ingratidão, não se sabe quem é burro e quem é o homem!

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