domingo, 2 de junho de 2024

O FINADO CIRÇO

 

Adão de Souza Ribeiro

                               Não é que eu fujo do tema. Mas é que desde a infância, a morte sempre me causou certa recusa em dissertar sobre o assunto. Embora ela seja certa, sempre procurei não encará-la de frente. Não a tenho como inimiga, mas é melhor deixá-la seguir o seu caminho sozinha, pois sei que não precisa de mim, na sua longa e solitária jornada.

                        Todas as vezes, que o sino da igreja matriz, badalava uma canção silenciosa e fora de hora, eu já sabia que um conterrâneo, partira para viagem sem volta, sem ao menos avisar seus amigos de boteco e das peladas de futebol. E, o que é pior, sem pedir ao vigário, o ritual da extrema unção. O clima do lugarejo, ganhava um ar de pesar.

                        As carpideiras, preparavam as lágrimas contratadas para a choradeira descomunal, durante as longas horas de homenagens. O ambiente fúnebre, era decorado com as mais diversas flores e coroas com dizeres de admiração ao de cujus. As velas quase apagando, em torno da urna, balançavam ao sabor do vento, para que a alma não ficasse na escuridão e errasse o caminho da salvação, indo bater na porta do purgatório.

                        Homens e mulheres, todos membros da amizade, da confraria e do bem querer do falecido, aproximavam e com olhar cabisbaixo, nada diziam e apenas desejavam felicidades na nova morada. E ele, como que lendo os pensamentos dos viventes presentes, dizia para si: “Lá não tem as peladas de futebol, como no campo da Fazenda Sabiá, nem as cachaçadas no Bar do Iwai e, muito menos, as carícias das primas na casa da luz vermelha. Como poderei ser feliz? Isso é conversa para boi dormir”.

                        Eu com a mania de observar o mundo e as coisas do dia a dia, ficava tristonho ao pensar do porquê que as pessoas partirem antes do combinado. Ali na sagrada Terrinha, onde todos nasceram e cresceram juntos, além de participaram das mesmas alegrias, não era justo alguém ir embora, deixando um vazio imenso. Meu Deus, que vida maluca!

                        Amanhã a rotina da cidade, seguiria o curso normal ou quase normal. O comércio abriria suas portas e, no Bar do Iwai, haveria um copo vazio sobre o balcão. No futebol da Fazenda Sabiá, quem bateria o pênalti? Quem receberia carícia da prima, na casa da luz vermelha? A esposa do falecido vestiu-se de preto, por um ano, em respeito ao luto. E, por isso, durante aquele período de isolamento não se engraçaria e não deitaria com outro homem, por mais atraente que fosse.

                        O Alfredo e o Cido Bobo, apareceram durante o ritual no Oriente Eterno (velório) e ficaram observando, sem nada entenderem, as atitudes das carpideiras. De vez em quando, alguém saia da sala fúnebre para tomar um gole de café ou fumar um cigarro. Embora o lugar fosse carregado, em razão do espírito do defunto ainda estar ali, as pessoas consternadas, por mais difícil que fosse, procuravam  descontrair.

                            Uma mosca atrevida, pousou na ponta do nariz do conterrâneo e ele sem força para espirrar ou expulsar a intrusa. O finado Cirço, quase morreu de tanto rir, ao ver o drama no teatro das carpideiras. Dona Ambrosina, uma amante discreta, enxugava a lágrima, que banhara a face, sem que o finado percebesse. “Meu docinho de cocô, você vai fazer muita falta!”, ela confidenciava ao enlutado coração.

                                O cachorro Pitoco, amigo fiel, ficava de prontidão, na porta de entrada e, por não entender nada dos humanos, esperava o tutor levantar e irem embora para casa. Assim ele fazia, quando o finado Cícero, o Cirço, estava nos botecos da cidade.

                         Para o momento fúnebre, Cirço envergava um velho terno cinza amarrotado, preparado as pressa por Sianinha, a doce amiga de infância. Para onde ele estava indo, não precisava de luxo e vaidade. Defunto pobre de luxo não precisa.

                        As pessoas ali presentes, trocavam comentários alusivos as virtudes daquele homem que dormia o sono dos anjos. O corpo que estava gélido e inerte, nada tinha a ver com aquele cidadão caliente de bondade e de alegria invejável. Alguém perguntou: “O nosso eterno amigo morreu de quê?”. Então, começaram as especulações e o diz–que-diz. Uma admiradora responde: “Ele morreu de overdose de prazer. Ninguém gozou a vida mais do que ele.

                        Eu peço desculpa por parecer funesto, durante a dissertação desta narrativa. Eu tenho a convicção de que é um tema muito pesado e triste, mas, de em vez quando, fica provocando a memória e pedindo para ser dito ou escrito. Eu não vou mencionar o nome do finado, a fim de não o constranger e nem comprometer a sua derradeira viagem ao campo santo, ou melhor, ao campo distante. Bem, vou parar por aqui. Este papo está ficando muito cadavérico. Cruz credo!

                        Eu apenas desejo ao finado Cirço, que a terra da santa Terrinha lhe seja leve. Querido amigo, descanse em paz!

 

Peruíbe SP, 02 de junho de 2024.

 

2 comentários:

Angela Maria Tavares disse...

Lindo texto , conto ou crônica? O tema não e muito atrativo assim como a viagem ao desconhecido. Na minha compreensão a morte é uma continuidade da vida num outro plano. Isto, afirmo com tranquilidade.
O mais interessante, é o meu sincronismo com este texto. Nesta noite , sonhei que estava num enterro e o defunto se levanto do caixão.

Angela Maria Tavares disse...

Parabéns por ser um novo membro na Nossa Academia Peruibense de Letras . Seja bem vindo.