Adão de Souza
Ribeiro
Eu sou um saudosista irrecuperável.
Constantemente tenho dito isso e não me canso de repetir tal frase. Às vezes
falo na terceira pessoa; outras, na primeira pessoa do presente do
indicativo. Hoje falarei na primeira,
pois acredito que fica mais pessoal. O diálogo transcorre com certa intimidade,
por isso, peço permissão e perdão ao amigo acostumado a ler e ouvir minhas longas
e intermináveis prosas.
Prosear é comigo mesmo. Costume que trago lá
do meu sertão e das minhas origens de caboclo. Aprendi a contar causos com meus
avós e com o povo simples da terrinha. Nas preguiçosas tardes domingueiras ou
nas noites enluaradas, reunia uma tropa de molecada, para ouvir as incansáveis
histórias contadas pelos mais velhos. Naquelas histórias, estavam os relatos de
experiência de vida ou fantasias do folclore brasileiro, coletadas por eles,
durante suas existências.
Os pais corrigindo e educando os rebentos,
sem medo de leis esdrúxulas. A professora ensinando o bê-á-bá, na cartilha
“Caminho Suave”. Antes de dormir, o “Bença pai e bença mãe”. Todos à mesa
para a refeição, precedida da costumeira oração de agradecimento, pelo pão
recebido. Em roda, todos sentados na calçada, defronte a casa, conversavam
descontraidamente, tratando os colegas por apelidos carinhosos, pois aquilo
eram as verdadeiras redes sociais.
Mas um belo dia, a modernidade, feito lobo
mal, chegou e devorou toda a inocência da infância e a singeleza do passado. Os
pais calaram-se, o professor apagou a lousa e fechou à cartilha, a mesa de
jantar não foi mais posta e a oração ficou careta, a lenda perdeu a graça e a
lua escondeu-se envergonhada, “Bença pai e bença mãe” substitui-se
por “E
aí, coroa!”, a roda de amigos ficou quadrada. Avida transformou-se numa
Torre de Babel. “Fins dos tempos” profetizou o beato Saturnino Zebedeu.
Como a Divina Providência que não dorme de
touca enviou pelas mãos laboratoriais dos chineses, aqueles que comem cachorro,
outros bichos e insetos, uma peste universal, a qual mudaria sobremaneira, todo
o roteiro da história e do desmando desenfreado de um povo herege e desumano.
Lembro-me das dez pragas do Egito.
A maldade dos orientais dizimou milhões de
habitantes deste planeta maluco e ninguém foi punido. Bem, isso fica para
depois. A mídia que, nos tempos de outrora, destruiu a simplicidade da minha
infância e arrebentou os lares sagrados, agora manda o povo ficar em casa,
feito gado rumo para o matadouro. Por quanto tempo há de durar nosso flagelo?
Na retina dos meus olhos e no arquivo de
minha memória, estão gravadas as cenas de minha infância e adolescência, onde
tudo era tão belo e tão simples. Esses fragmentos não hão de se apagar jamais,
pois ainda renderão lindas histórias a serem contadas, sem a mácula do
progresso, esse monstro devorador de criancinhas de asas, de auréolas e tudo o
que os anjos terrestres têm direito.
Não era atoa, que outro dia, uma mulher, cuja
modernidade desensinou os pais corrigir, educar e conviver com filhos
conversava desesperada ao telefone com meu vizinho. Ela dizia que não aguentava
mais os filhos dentro de casa o dia todo e não sabia mais como lidar com eles.
“Estou indo à loucura. Filho tem que estar na
escola, na creche, na natação, na rua... no balé, mas não dentro de casa.”,
desabafava a pobre mãe. O meu vizinho, um psicólogo renomado, emendou para
confortá-la: “Calma, que logo tudo voltará ao normal. Creia!”. Anormal é conviver
com os pais?
Confesso que fiquei estarrecido e indignado
com aquilo. Não queria crer, que uma mãe sentisse tão incomodada com a presença
diária dos filhos. Como numa película de cinema, revivi as cenas de meus pais
tão felizes conosco, ali naquela lida cotidiana. A casa cheia, o corre-corre para
lá e para cá, o barulho dos pequerruchos, a mesa farta, os choros de pura
manha. Ser pais e ter filhos era prazer e não obrigação. Aquilo é que dava vida
e encanto a casa.
Depois que inventaram a televisão, o mundo
passou a medir cinquenta e duas polegadas. A telinha ofuscou a visão e atrofiou
o cérebro do povo e, por isso, querem ver e pensar por nós. Viramos verdadeiras
vaquinhas de presépio. Mas o sertão onde nasci é imenso e não se mede. Lá somos
livres e conseguimos divisar o horizonte com seu lindo arrebol. O sertanejo é,
antes de tudo, um forte e um gigante pela própria natureza.
Os chineses inventaram a praga moderna e a
tragédia reinventou a família. E eu, um caboclo xucro do sertão, percebi sem
querer, que tive a honra e o prazer de nascer em um tempo, onde tudo era anormal
e, em especial, viver em harmonia, no seio da família. Posso sair gritando por
ai, sem medo de errar: “Eu não sou maluco. Eu sou um (a)normal!”.
Peruíbe SP, 04
de abril de 2021.
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