sábado, 9 de janeiro de 2021

ALCAIDE, CABRA BOM

 

Adão de Souza Ribeiro

                               A governança de um município exige sabedoria, discernimento e pulso firme.  Um alcaide borra-botas ou Maria vai com as outras, não serve. A história universal sempre reservou um canto para os governantes mal preparados para o cargo. Caem no ostracismo e na Grécia antiga, eram condenados ao desterro, com uma pena de dez anos, numa votação secreta outorgada pelo povo.   

                        As disputas políticas, na minha terra natal, eram acirradas. Até pareciam final de decisão de campeonato futebolístico. Nas vendas, botecos e na praça matriz, os bate-bocas estendiam-se até altas horas da noite. De um lado, os apoiadores; do outro, os opositores. De vez em quando havia troca de empurrões ou tapas, entre os mais exaltados. Muros pintados, bandeirinhas, santinhos e jingle dos candidatos, alegravam o lugarejo. Eu, ainda menino, nada entendia de disputa eleitoral. Por isso, só apreciava aquele furdunço. “A política passa e as pessoas permanecem”, pensava comigo.                                                                                                                                             

                        Naquele ano foi eleito Setembrino de Souza, com maioria esmagadora dos votos. Sua plataforma foi defender os interesses daquele povo desvalido. Corrupção não existia no dicionário e nem na linguagem simplória dos capiaus. Uma vez empossado, passou a cumprir o prometido. Em pouco tempo, colocou em ordem no caixa da Prefeitura Municipal. Não aceitava conchavo político, pois, para ele, o bem público estava acima dos interesses pessoais e particulares.

                        Setembrino de Souza era um homem arrojado. Vindo das bandas do Norte do País, em cima de um pau-de-arara, trazido nos braços dos pais, ainda enrolado nos cueiros, encontrou acolhimento ali. Essa era a razão maior de seu amor pela terra acolhedora. Todas as manhãs, com o sol despontando no horizonte, saia para vistoriar a cidade, montado no “Chá Preto”, um jumento caolho e manco de uma perna. Travestido de vaqueiro, sem esquecer-se do cachimbo, abastecido com fumo-de-corda, realizava sua romaria cotidiana.

                        Com um jeito simples no falar e firme nas decisões, logo conquistou a simpatia de todos os subordinados e cidadãos. Como passatempo, gostava de ouvir e fazer fofocas e, ainda, bisbilhotar a vida alheia. O rosto sisudo, característica do nordestino, impunha medo e respeito. No gabinete, procurava atender a todos, sem distinção. Não era à toa, que recebia todo tipo de agrado, desde galinha caipira, sacos de mandioca, pedaços de pamonha, feitas por dona Joana e por ai se vai. Só não aceitava propina em razão do cargo.

                        Os recursos financeiros vinham dos impostos prediais, do comércio e da agricultura. Por isso, assim como os municípios vizinhos, tinha que, de penico na mão, bater á porta dos Governos Estadual e Federal, clamar por verbas, a fim de saldar suas promessas de campanha. “Tenho que honrar meu bigode”, dizia ele constrangido. O povo não podia sentir-se enganado. Missão dada é missão cumpria.

                        Certa feita, acompanhado de assessores diretos, bateu á porta do Governador. O chefe do Estado recebeu todos os prefeitos com suntuoso almoço. Uma iguaria diversificada. Política sabe como é! Muito tímido, pouco escolado e de palavras diretas, o nosso alcaide sentiu-se um peixe fora d’água naquele banquete palaciano.  Pratos e talheres de inox, taças de cristais, guardanapos delicadamente dobrados, a decoração da mesa, as luzes em tom solene, os serviçais uniformizados, os convivas comportados ao redor da mesa, tudo aquilo assustou o representante supremo da nossa terrinha.

                        Num determinado momento e a certa altura do jantar, sentindo-se incomodado com tanto luxo, Setembrino de Souza, Sua Excelência, o nosso Alcaide, alegando estar sem apetite, manifestou desejo de se retirar. Lá na terrinha não tinha aquela frescura toda. Comia-se cuscuz amassado com as mãos, tomava-se vinho no copo americano e limpava-se a boca com a barra da toalha. Até cumprir todo aquele ritual palaciano, a fome já fora embora. Já fazia horas, que o estômago de Setembrino de Souza roncara, anunciando a chegada da fome.

                        Os assessores diretos tentaram contornar a situação. Os convidados só deixam o local, depois do Governador, o anfitrião. Homem empirriado e de opinião, não abdicava do desejo de se retirar. Seria uma afronta a todos e em especial, ao chefe do Estado, tamanha descortesia. Aquilo chegou aos ouvidos do Governador, que sentava à cabeceira da mesa.

                        Então polidamente o Governador, dirigindo-se ao Setembrino de Souza disse: “Setembrino, honrado Prefeito, é demasiadamente prazeroso tê-lo entre nós. Fique e coma conosco”.

                        Diante de tanta insistência e não acostumado com os verbetes grã-finos, que o momento proporcionava, Setembrino de Souza – nosso Alcaide, respondeu educadamente e com toda simplicidade que lhe era peculiar: “Então me dá um pedaço do CONOSCO”.

                        Até hoje não se sabe, se ele pediu um pedaço do CONOSCO com katchup ou mostarda. Sabe-se apenas que o banquete palaciano entrou para a história da nossa amada terrinha. Tudo isso por causa do Setembrino de Souza, nosso Alcaide.

                        Deus salve nosso Alcaide, cabra bom!

 

Peruíbe, 09 de janeiro de 2021.

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