sexta-feira, 29 de março de 2024

A CARTA

 

Adão de Souza Ribeiro

 

                        Numa dessas tardes chuvosas, sentado na espreguiçadeira, estrategicamente colocada na varanda da casa grande da fazenda, coroné Saturnino danou-se a pensar nas coisas do passado. Do lado esquerdo, uma escarradeira, onde depositava a saliva pegajosa, fruto do cigarro de palha, feito com fumo de corda. Do lado direto, uma banqueta, que sustentava uma garrafa e uma xícara de café.

                        Dali podia contemplar a imensidão de suas terras e a majestosa natureza que, ao longe, presenteava com o rio, a mata fechada e as aves bailando aqui e acolá. Nada o incomodava, pois o único som era de um quero-quero, que protegia o ninho contra  um teiú. Uma cobra sucuri, passou rastejando perto dele e nem se assustou, pois estava acostumado com ela. Do interior da casa, vinha o cheiro das quitutes cuidadosamente preparadas por Carmosina, sua inseparável companheira. “Diabo de mulé por demais arretada, sô!”, pensava ele, entre suas uma divagações.

                        Nas viagens que a memória fazia, durante aquela tarde chuvosa, lembrou-se saudosamente das cartas que escrevia ou recebia de Carmosina, durante os flertes da infância. Ela morava lá pelas bandas da “Serra do Rola-Moça”, no Estado de Minas Gerais. Uma formosura de menina, que se engraçou por ele, quando o pai esteve na região, a fim de fazer contratação de trabalhadores para fazenda e levou o menino.

                        No início do namorico, escrevia cartas para pretendente. À noite, sob a luz do candeeiro, lançava mão de uma caneta esferográfica e danava a escrever para menina. Ele era de um romantismo invejável e, por isso, usava as palavras certas e aquilo cativava a mineirinha cada vez mais. “Ao escrever essas maus traçadas linhas, debruço-me na saudade de você, minha amada. Não imagina o quanto padeço distante da mulher, que aprendi amar...”, assim dizia ele.

                        Depois de redigir a carta, cheia de dengos, envelopava e endereçava para a pretendente que, um dia, quis o destino, tornaria a sua mulé arretada. Em seguida, entregava ao seu capataz, com a incumbência de levar até a cidade e postar no Correio. A partir dali, ficava na ansiedade em receber a resposta. Contava os segundos, as horas e os dias, por notícias. Às vezes, na dura labuta do dia-a-dia, perdia em pensamentos, lembrando da menina lá das bandas da “Serra do Rola-Moça”.

                        Quanta beleza e ternura, havia naquele tempo, onde a vida acontecia sem pressa. As coisas aconteciam aos poucos e devagar. Eram como as frutas nos pés. E, uma vez amadurecidas, tinham um sabor indiscutível. Por isso, crê-se que a união do casal, vai para mais de sessenta anos. Saturnino e Carmosina orgulham-se disso, pois geraram os filhos, netos e bisnetos. Ela nunca arredou os pés e sempre esteve ao lado do esposo.

                        Hoje, a modernidade criou o telefone e uma tal de rede social. O bicho chamado Whatsapp encurtou o tempo e a distância e, por isso, perdeu-se o romantismo e o sabor da espera. Os casais não sabem o que é saudade e o que é pior, desaprenderam como escrever. Eles usam gírias, palavras abreviadas, erros de português e termos estrangeiros. O mundo descambou e acabou caindo no despenhadeiro da mesmice do modernismo.

                        Enquanto estava perdido em pensamentos, o coroné Saturnino deu um forte trago no cigarro de fumo corda e deixou escapar uma lágrima no canto dos olhos. A lágrima misturou com as gotas da chuva, que tocavam na grama ao derredor. O pigarro na garganta, jogou na escarradeira para, depois, tomar um gole de café feito pela querida Carmosina.      

                        Vá pro inferno esse maldito de modernismo!”, esbravejou sozinho, com seus botões, o velho coroné Saturnino.

 

Peruíbe SP, 29 de março de 2024.

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