domingo, 9 de outubro de 2022

O ÚLTIMO MUGIDO

 

Adão de Souza Ribeiro

 

                               Waldemar, o “Azeitona”, era como qualquer outro moleque do lugarejo. Moreno, franzino, cabelo encaracolado, largo sorriso no rosto e um andar engraçado, de quem está apressado. Avesso às brigas, ele gostava de inventar brincadeiras divertidas. E, sem saber, tinha o dom de agregar amigos. Todos os meninos de sua idade, gostavam de acompanhá-lo, aonde quer que ele fosse. Enfim, um líder nato.

                        Ao chegar da escola, tirava o uniforme, guardava o material de estudo e saboreava a deliciosa comida, que estava sobre o fogão a lenha, feita por dona Carmosina – sua zelosa mamãezinha. Depois de saciada a fome, ele saía a procura de sua turma, para costumeiras brincadeiras infantis. O resto da tarde, que se estendia até o anoitecer, era reservado para as peraltices.

                        As corridas de “carrinho de rolimãs”; disputa de bilboquê; caças aos passarinhos com estilingue; nadar na “Lagoa do Hermininho”; pegar escondida a goiaba no quintal do vizinho; fazer cabana e brincar de casal com as meninas; contar estória, nas rodas de criança, sentados na sarjeta, eram algumas das brincadeiras lideradas por ele.

                        “Azeitona”, com seu jeito extrovertido e alegre, cativava a todos, inclusive, os adultos. Dona Carmosina, já se acostumara com o entra e sai de crianças em sua casa, à procura do filho. Sem ele, as brincadeiras não tinham graça. Ele sabia, como ninguém, estimular os interesses dos amiguinhos.

                        Por ser um menino pobre, tendo os amigos, do mesmo nível social, as brincadeiras eram simples. Ele não sabia como as outras crianças do lugarejo, tidas como pseudo-ricas se divertiam. Havia na outra classe social, uma menina a quem ele nutria certa admiração e, no entanto, isso não alterava à sua maneira de ser e agir. Para ele, na verdade, aquilo era de somenos importância.

                        Dentre as brincadeiras e diversões do menino “Azeitona”, estava o gosto em assistir o abate de gado, no Matadouro Municipal. Todas as tardes de quarta-feira, lá estava ele, acompanhado de sua turma, ouvindo o último mugido de um boi escolhido para o sacrifício final.

                        Atrelado ao prédio, havia um curral de madeira, onde os bois eram confinados. No interior e no piso, uma argola de ferro, era chumbada ao centro, que dividia espaço com o ralo, onde escoava o sangue. Correntes passavam por roldanas, as quais eram presas ao teto. Por aquelas roldanas, era içado o boi já sem vida, para ser esquartejado. Por que será que as vacas são sagradas na Índia?

                      Empoleirados na madeira do curral, a molecada provocava os bois para vê-los enfurecidos e quando investiam contra eles, davam descontraídas gargalhadas. A molecada sabia de que de nada adiantaria a fúria dos bovinos, pois, horas depois, seriam reduzidos a pedaços de carne, pendurados no único açougue do lugarejo, para saciarem a fome dos conterrâneos famintos.

                        Na hora fatídica, ele era laçado e puxado para dentro do matadouro, por uma corda presa na argola. Quanto mais debatia, para fugir da morte, mais escorregava no piso molhado. Já com a cabeça junto a argola, sem condição de movimentar-se e de reagir, era golpeado por uma faca, entre a cabeça e o pescoço. Depois de emitir seu último mugido e, já sem força nas patas, caia ao solo já desfalecido.

                        Na sequência, os impiedosos açougueiros, com os ganchos, que estavam presos nas correntes, cravavam nas patas traseiras do animal. Quando ele já estava totalmente dependurado e de cabeça para baixo, ali começava o ritual de esquartejamento.

                        De posse de facas afiadas e amoladores, retiravam todo o couro, deixando o animal desnudo. Numa ação sincronizada, retiravam todos os órgãos internos (coração, rins, fígado, bucho, vísceras e etc.). Depois era a vez das partes nobres, isto é, contrafilé, alcatra, maminha, acém, picanha, fraldinha, filé mignon, paleta, bananinha, colchão mole, colchão duro, costela e por aí se vai. Tudo era aproveitado e consumido pelos clientes.

                        Enquanto o bicho era dissecado, “Azeitona” de cócoras, num canto do salão, pensava: “Cadê aquele bicho forte e bravo? Se Deus nos deu o alimento colhido da natureza, por que sacrificar um ser vivente, para saciar a nossa fome? ”. Ao sacrificar o gado, para saciar a fome, o homem estaria cumprindo o mandamento Divino?

                        Lembrou-se do trecho bíblico, que diz: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda terra e sobre todos os animais pequenos que se movem rente ao chão”. – Gênesis 1: 26-28.

                        “Azeitona” cresceu e foi morar em outras plagas. Os fiéis meninos de sua turma dispersaram e para onde foram, não se sabe. Apenas a estrada de chão batido, por onde passava a boiada, continua a mesma de outrora. Adeus às diversões infantis, daquelas crianças pobres. Hoje tudo se resume em saudades!

                        O tempo passou e, hoje, o Matadouro Municipal é apenas um prédio abandonado e carcomido pelo tempo. Sem teto, reboco, portas e janelas. O curral não existe mais. Está sem vida e envolto em matos. Assim como o boi, parece ter sido dissecado pelo tempo. Ao vê-lo assim, ainda se ouve do seu interior, um boi sendo sacrificado e dando o último mugido.

                       

Peruíbe SP, 08 de outubro de 2022

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