terça-feira, 13 de novembro de 2012

NO DIA EM QUE A CIDADE PAROU

          Manhã de domingo. Irradiante de felicidade e com uma paz enorme no coração, apanhei a bíblia e o rosário, rumando para a igreja matriz. Eu embriagado de tanta felicidade, nada percebi ao longo do caminho. “Salve rainha, mãe de misericórdia... Pai nosso, que estais no céu... Ave Maria, cheia de graça...”, assim mentalizava as orações repetitivas e maçantes do ritual litúrgico. Aos domingos, tinha por costume, esquecer as mazelas da vida. Já não bastavam as atribulações da semana? Embora criança, eu aprendi no catecismo, dar a Cesar o que é de Cesar e a Cristo o que é de Cristo.
                        Mas ao subir as escadarias, vi que a porta estava fechada. Será que cheguei atrasado ou fui excluído da homilia? Se não cometi heresia, então por que tal penitência? Dei uma volta em torno da santa igreja e tudo fechado. O sino preso à torre de madeira estava estático; o badalo tão cantante, inerte. O alto falante, que anunciava os atos episcopais e os féretros, estava triste e mudo. No céu de brigadeiro, nenhuma andorinha com sua coreografia divinal.   
                        Foi nesse momento, que dei conta da cidade deserta, enlouqueci. Olhei ao derredor e me deparei com um silêncio estonteante. Nada acontecia, como que se um vendaval tivesse varrido do mapa, a vida bucólica da minha cidade. Por onde andavam as pessoas, os animais, a correria do dia-a-dia, o perfume das flores, o bailar das árvores, os seios fartos debruçados na janela, a canção alegre do rio, os beijos enamorados... por onde andava a minha cidade?
                        Perdido dentro de mim, eu percorri as ruas descalças e as esquinas mudas. Procurei pelas pessoas da minha infância e não estavam lá. O padeiro Onofre, solou a massa. O leiteiro João, derramou o leite da vida. O delegado Orlando, encarcerou a última esperança. O médico Sheizu, não tinha receita para o desânimo. A professora Almada, fechou a página da cartilha “Caminho Suave”. Procurei por mim e não me encontrei. A minha cidade era um quadro opaco, pendurado na parede da infância distante.
                        A quem deveria recorrer para saber o que estava acontecendo, se não tinha uma viva alma perambulando pelas ruas? Teriam as pessoas sido abduzidas e levadas para o desterro do desconhecido? Uma cidade encantadora, não poderia padecer de tamanha amargura e injustiça. Se eu encontrasse o alcaide ou o delegado, cobraria providências. Mas ao padre, pediria que exorcizasse a solidão do meu povo. Pediria ao médico que curasse a inércia de quem deveria lutar pelo bem comum.
                        Por um momento, sentei-me no meio fio e chorei longamente. Tal qual uma criança abandonada pelos pais, solucei. Não podia compreender como tudo aconteceu tão repentinamente e sem uma explicação plausível. Por um momento, senti-me órfão da vida e de mim, inseguro. As flores inodoras, o vento invisível, as casas fechadas dentro de si, os quintais vazios das traquinagens infantis, as ruas em passos lentos, os bares sem o tintilar dos copos, davam a exata dimensão da minha tristeza. E se eu rezasse? E se eu clamasse aos céus? E se eu me indignasse? Isso resolveria? De quem era a culpa de tamanha ignomínia levantada contra meu povo?
                        Ao recobrar-me do choro e depois de secar as lágrimas, respirei fundo e me recompus. Precisava buscar uma resposta para entender o porquê da minha cidade deserta. Não sei de onde viria a voz da verdade, já que nenhuma autoridade constituída  estava presente. Embora na tenra idade, eu tinha o direito de redescobrir a beleza da minha cidade e a alegria do meu povo. A minha inquietação e revolta haveria de ter resultados surpreendentes. Não nasci para aceitar com passividade o que não conseguia compreender.
                        Embora pequena, minha cidade tinha uma rotina. E era isso que dava vida e impulsionava as pessoas para o futuro, com planos sólidos e serenos. Mas deserta, daquele jeito que eu via, sem sangue em suas artérias, entristeceu-me. Tinha violência? Nada que causasse trauma ou polêmica, basta ver a cela da cadeia sempre vazia e o delegado tomando cachaça no “Bar do Aname”. Um ladrão de galinha, uma briga de comadres, um acidente de charrete, um marido enciumado, nada mais.
                        Ainda ali no meio fio, abri a bíblia, danei a rezar e a invocar a santidade do padre Antônio. O silêncio ecoava pelos quatros cantos e me torturava. Queria uma resposta e não tinha. Por que levaram a alma da minha cidade, arrebataram seu coração e sucumbiram o brilho de seus olhos? Queria de volta o sangue da alegria, que pulsava em suas artérias, pois esse era meu direito, como filho dela. Ninguém tinha o direito de calar a sua voz e empalidecer o seu encanto.
                        Foi então que percebi, num momento de lucidez e desprovido de emoção, que a minha cidade parou, não por desígnio de Deus; mas, sim, num toque de recolher, imposto pelo crime organizado.

Obs: Os nomes são fictícios e qualquer semelhança com pessoas reais, são meras coincidências.

Peruibe SP, 13 de novembro de 2012

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