domingo, 2 de abril de 2017

CARNE FRACA


                      Tenho gravado na retina da minha infância, cenas bucólicas de minha terra natal. As acolhedoras ruas descalças; o jardim florido, da praça matriz; o modesto estádio de futebol; as celas desabitadas da delegacia; as marchinhas de carnaval; as cercas divisórias, entrelaçadas com melão de são caetano; o frondoso  pé de manga burbom; o cinema de paredes envelhecidas; as missas em latim, do padre Antônio, os desfiles cívicos, com seus carros alegóricos, a escola primária. Assim era Guaimbê SP, berço da minha vida.

                                   Foi assim, aos poucos, que minha vida foi desenhando e formando a minha personalidade. Com a argila do tempo, aquele povoado foi moldando o cidadão que sou hoje. Não posso esquecer meu amor platônico, pela filha da professora primária. E porque não falar das brincadeiras infantis, sob a proteção das noites enluaradas. Aos sábados, os roceiros vinham fazer as compras da semana e as ruas pareciam um mercado persa. Lindo de se ver!

                                   Ali naquele cantinho do Estado, um lugar esquecido pelo progresso selvagem, aprendi respeitar a natureza, obedecer meus pais, amar os idosos, a ter fé imensurável em Deus e, acima de tudo, rezar a cartilha da moral e dos bons costumes. Descobri que a minha liberdade termina, onde começa a do vizinho. Os filhos do progresso e da tecnologia chamam-me de retrógado... não me importo.

                                   Uma das cenas infantis, gravada para sempre na minha memória, era a forma arcaica do abate de animais, em especial, o gado. Lá vinham dois ou três bovinos caminhando lentamente em direção ao matadouro. Primeiro, eram confinados num curral de madeira, anexado ao prédio. Ali permaneciam até o momento da hora derradeira. Eu observava o olhar de tristeza de cada um deles e me entristecia também.

                                   O matadouro distava uns mil metros da última rua descalça. Era um salão grande, com roldanas no teto e argolas no chão. Com uma corda no pescoço, o animal era conduzido até o centro, sendo que a corda passava pela argola. Ali, de cabeça baixa, recebia um golpe certeiro de uma faca, na altura da nuca, próximo ao chifre. Ao cair no solo, já desfalecido, dava o último e pesaroso mugido. Nas narinas o ultimo suspiro de vida e, na boca, uma espuma esbranquiçada, com sabor da morte.

                                   Sem o pulsar das veias e a batidas do coração, seu corpo desfalecido era içado por correntes, presas às roldanas no teto. A partir dali, facas afiadas retalhavam o corpo ainda quente, retirando as vísceras e o couro. Na dança das facas, as mãos dos açougueiros, esquartejavam o boi, enquanto o sangue se esvaia pelo ralo. Algum tempo depois, não mais existia o boi e nem a vida, apenas pedaços (contrafilé, alcatra, cupim, acém, etc), que iriam abastecer açougues.

                                   Não havia frigorifico, vigilância sanitária, ministério da agricultura, polícia federal, imprensa, propina. Havia apenas consumidores simples que, assim como eu, assistiam ao vivo e a cores, todo o ritual do abate e da distribuição da carne. Tudo era consumido sem medo, até mesmo a língua, o cupim, o mocotó e o testículo. O tempo se foi e o matadouro envelheceu, devorado pelo mato ao derredor. Embora o tempo tenha esquartejado as paredes daquele lugar, ele jamais saiu das retinas da minha infância.

                                   Lembro-me de um fato surreal, quando uma mulher recatada, esposa de um renomado comerciante da cidade, deu um sapeca iaiá (traiu) com um vaqueiro rude. Aquele ato impensado dela, adocicado pela atração física, correu de boca em boca, através da rádio peão. Por muito tempo, aquela escorregada extra matrimônio, povoou as conversas de boteco e as fofocas das alcoviteiras. Envergonhada, ela não saiu mais de casa; mas já era tarde, pois o estrago estava feito.

                                   Mas um dia, quando isso chegou aos ouvidos do vigário Antônio, pároco do lugarejo, ele de um jeito consternado e olhar divino, disse: “A carne é fraca”. Foi então que entendi que, por estar sujeita as tentações, a carne humana é fraca; não a carne bovina, pois ela está sujeita apenas aos desejos da procriação.

 

Peruíbe SP, 02 de abril de 2017.        

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