Tenho gravado na
retina da minha infância, cenas bucólicas de minha terra natal. As acolhedoras ruas
descalças; o jardim florido, da praça matriz; o modesto estádio de futebol; as
celas desabitadas da delegacia; as marchinhas de carnaval; as cercas
divisórias, entrelaçadas com melão de são caetano; o frondoso pé de manga burbom; o cinema de paredes
envelhecidas; as missas em latim, do padre Antônio, os desfiles cívicos, com
seus carros alegóricos, a escola primária. Assim era Guaimbê SP, berço da minha
vida.
Foi assim, aos poucos, que minha
vida foi desenhando e formando a minha personalidade. Com a argila do tempo, aquele
povoado foi moldando o cidadão que sou hoje. Não posso esquecer meu amor platônico,
pela filha da professora primária. E porque não falar das brincadeiras
infantis, sob a proteção das noites enluaradas. Aos sábados, os roceiros vinham
fazer as compras da semana e as ruas pareciam um mercado persa. Lindo de se
ver!
Ali naquele cantinho do Estado, um
lugar esquecido pelo progresso selvagem, aprendi respeitar a natureza, obedecer
meus pais, amar os idosos, a ter fé imensurável em Deus e, acima de tudo, rezar
a cartilha da moral e dos bons costumes. Descobri que a minha liberdade
termina, onde começa a do vizinho. Os filhos do progresso e da tecnologia
chamam-me de retrógado... não me importo.
Uma das cenas infantis, gravada
para sempre na minha memória, era a forma arcaica do abate de animais, em
especial, o gado. Lá vinham dois ou três bovinos caminhando lentamente em
direção ao matadouro. Primeiro, eram confinados num curral de madeira, anexado
ao prédio. Ali permaneciam até o momento da hora derradeira. Eu observava o
olhar de tristeza de cada um deles e me entristecia também.
O matadouro distava uns mil metros
da última rua descalça. Era um salão grande, com roldanas no teto e argolas no
chão. Com uma corda no pescoço, o animal era conduzido até o centro, sendo que
a corda passava pela argola. Ali, de cabeça baixa, recebia um golpe certeiro de
uma faca, na altura da nuca, próximo ao chifre. Ao cair no solo, já desfalecido,
dava o último e pesaroso mugido. Nas narinas o ultimo suspiro de vida e, na
boca, uma espuma esbranquiçada, com sabor da morte.
Sem o pulsar das veias e a batidas
do coração, seu corpo desfalecido era içado por correntes, presas às roldanas no
teto. A partir dali, facas afiadas retalhavam o corpo ainda quente, retirando
as vísceras e o couro. Na dança das facas, as mãos dos açougueiros, esquartejavam
o boi, enquanto o sangue se esvaia pelo ralo. Algum tempo depois, não mais
existia o boi e nem a vida, apenas pedaços (contrafilé, alcatra, cupim, acém,
etc), que iriam abastecer açougues.
Não havia frigorifico, vigilância
sanitária, ministério da agricultura, polícia federal, imprensa, propina. Havia
apenas consumidores simples que, assim como eu, assistiam ao vivo e a cores,
todo o ritual do abate e da distribuição da carne. Tudo era consumido sem medo,
até mesmo a língua, o cupim, o mocotó e o testículo. O tempo se foi e o
matadouro envelheceu, devorado pelo mato ao derredor. Embora o tempo tenha esquartejado
as paredes daquele lugar, ele jamais saiu das retinas da minha infância.
Lembro-me de um fato surreal,
quando uma mulher recatada, esposa de um renomado comerciante da cidade, deu um
sapeca iaiá (traiu) com um vaqueiro rude. Aquele ato impensado dela, adocicado
pela atração física, correu de boca em boca, através da rádio peão. Por muito
tempo, aquela escorregada extra matrimônio, povoou as conversas de boteco e as
fofocas das alcoviteiras. Envergonhada, ela não saiu mais de casa; mas já era
tarde, pois o estrago estava feito.
Mas um dia, quando isso chegou aos
ouvidos do vigário Antônio, pároco do lugarejo, ele de um jeito consternado e olhar
divino, disse: “A carne é fraca”. Foi então que entendi que, por estar sujeita
as tentações, a carne humana é fraca; não a carne bovina, pois ela está sujeita
apenas aos desejos da procriação.
Peruíbe SP, 02
de abril de 2017.
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