Caia a tarde e a
noite se avizinhava. As províncias e os vilarejos do “Reino Caiçara”
preparavam-se para dormir. As ruas cobriam-se de silêncio e as aves recolhiam
em seus ninhos, saudando o dia que se foi. Lá longe, podia-se divisar o rosto
preguiçoso da lua, chegando mansa e sorrateira. A natureza pintava um quadro de
ternura e paz. O vento dançava uma valsa suave, convidando os seres viventes a
sonhar o sonho dos anjos. Tudo era belo, tudo era paz.
E eu ali, debruçado na janela do
tempo, contemplava a metamorfose daquela imagem, que me embriagava os olhos.
Nem o mais renomado dos artistas, conseguiria retratar em tela, aquilo que
minha retina gravava com tanta exatidão. A vida tem a cor que a nós pintamos.
Percebi que o sol, já cansado e tímido, caminhava lentamente em direção ao
arrebol. E para recebê-lo, o horizonte estendia um tapete lusco-fusco. Uma aquarela estampada com maestria pelas mãos
talentosas do universo.
De repente, surgia uma nuvem aqui
e acolá. Aos poucos iam se juntando e formando desenhos desconexos e eu, como
na minha infância, procurava decifrá-los. Ora bichos... ora árvores... ora gente...
ora seres indecifráveis. Não demorou muito e elas foram se tornando escuras e
carregadas. Vi o reino fechar os olhos e se recolher de medo. Não se divisava mais
o horizonte e nem o coaxar dos sapos martelos. Nenhum pio das aves, abrigadas
entre os galhos frondosos da paineira velha.
O vento forte chegou primeiro,
para avisar que uma tempestade, estava a caminho. Não demorou muito, uma rajada
de raios riscou o céu e o eco dos trovões, gritou noite adentro. E eu, teimoso, continuava debruçado na janela
do tempo. As primeiras gotas de chuva beijaram a minha face. Um beijo frio de
arrepiar a epiderme e de trincar os ossos. Lá da cozinha, agarrada a um terço, minha
mãe rezava uma oração repetitiva a Santa Bárbara. “Menino, corre e coloca um prato
com água, açúcar e sal atrás da porta”, disse ela. Mãe apertava o terço
ao peito. Atendi, é claro.
Agarrei um ramo bento (de
palmeira) e joguei pela janela. Dali observei, amedrontado, as águas subirem
pelas ruas do reino, até onde minhas vistas alcançavam. Num
piscar de olhos, a “Praça dos Três Poderes”, centro administrativo do “Reino
Caiçara”, onde se localizava o Palácio Real, o Parlamento e a Suprema Corte estava
toda ilhada. As ruas ao derredor tornaram intransitáveis, impedindo o tráfego
das carruagens, cabriolés, carroças e charretes. Um cachorro
magro e sarnento foi levado pela correnteza afora. Triste cena. A
chuva torrencial apanhou todos de surpresa. Não se sabia o que era rua e o que
era água.
Um heroico jornalista, que
transitava por ali, fazendo a voz do povo, gritava por responsabilidade dos
administradores do reino e perguntava por onde estava o rei, bem como, o
presidente do parlamento e o da suprema corte. Penso que, no que diz respeito
ao abandono da urbe, a responsabilidade também se estende ao governados. Cuidar
das cidades e dos vilarejos é um dever de todos nós. Os lixos jogados nas ruas
e terrenos baldios e, ainda, a impermeabilidade do solo, são fatores preponderantes
para as grandes inundações.
A arquitetura do prédio que
abrigava a Suprema Corte lembrava-me a arca de Noé. Veio à memória, aquele
caixote de três andares, navegando à deriva, durante quarenta dias e quarenta
noites. Numa tormenta sem fim, vi a terra virar mar e o mar virar solidão. Ironia
do destino, a Suprema Corte há de navegar por anos e anos, por mares revoltos.
Arrastará nessa sina, o Palácio Real e o Parlamento,
Da janela do tempo, observo a
profecia sendo cumprida. Resta-me apenas olhar para o céu e pedir ao Criador
que se abrevie as noites de tormenta.
Peruíbe SP, 31
de janeiro de 2018.